quinta-feira, abril 10, 2014

Para reler em mim


As palavras que por aqui escrevo são surpreendentes cúmplices do tempo e das mudanças que por mim vão vagueando. Desafiando cada momento para que não me esqueça nunca dos mil e um sentidos e motivos pelas quais as liberto e as guardo em mim. Como memórias perpetuadas do que não posso nem quero esquecer porque são elas, pelo seu traço e existência, o que também de mim não posso abandonar. Grata por povoarem, com todos os seus simples e grandiosos significados, a minha vida e as poder usar como aliadas da minha e vossa presença neste lugar, ou estado de alma, a que chamamos de mundo.

terça-feira, março 25, 2014

Luz baça

A luz baça do quarto vazio onde a noite sem trajeto adormece
Despida de outra respiração ou vida
Desenha uma alma vagabunda, segredando cansada,
Que aqui permanece possivelmente perdida.

segunda-feira, março 24, 2014

Distâncias I


Não saberei dizer com palavras
Tudo o que os dias vão escrevendo com a espera do olhar.
Não existirá tempo que abrace o teu corpo ausente e
Não encontrará o corpo este tempo inscrito nos segundos de volta
A um outro momento presente,
Onde sobrevive o mar e o vento,
Onde as frases viverão
Serena e suavemente,
Em simples sequências da palavra amar. 

domingo, fevereiro 16, 2014

Deste lado

Quando o ar nos engole e nos cospe para fora da realidade onde sempre vivemos, faz-nos rastejar sem corpo, e soluçar sem água. Faz-nos perder o ultimo toque da luz que nem à memória nos chega por ser tanta a sua distância. Faz-nos suspirar sem som, e calar sem ter palavras para o fazer. Faz-nos desistir de o ser. De entre tudo o que resta permanece apenas um lugar vazio. O vazio, mestre nas suas infinitas paisagens. Por fim os olhos fecham-se.

Quando sem nos apercebermos se abrem, o que anteriormente se viveu flutua num espaço limitado e pouco iluminado, onde o sangue se sente e se segue. Teima em constante retorno dentro de mim. Está na minha frente, precoce, inconstante, frágil e renitente, a réstia de uma qualquer esperança a chegar a mais um dia sem que este pareça sem fim. Sobreviveremos sempre aos sentidos trocados, às palavras dolorosamente cravadas, aos abraços descuidadamente deixados noutro tempo e aos beijos desencontrados, às mãos que deixarão de ser dadas. Sempre. É a esperança teimosamente a fazer-se vencer.

segunda-feira, dezembro 02, 2013

E...

     ... quando foi que me perdi de todas estas palavras?

domingo, dezembro 01, 2013

Nada...


Não há memória possível de descrever nesse espaço sem tempo. Nem sorriso possível de repetir. Nem som que me faça mover sem sentido. Não há partícula que alcance a superfície da pele. Não há. Não há expressão. Não há sentido.
É o branco que me chama aqui. O imaginar cálido do nada. Da cor que tudo recebe. Onde me transporto sem nada comigo levar. Não há passado, não há futuro, nem há sequer presente nestas palavras. Tudo desvanece no nada. E do nada ressoa uma pulsação ilusória que me adormece. Voltarei a perder-me nas linhas numa outra dimensão com sentido, quando o sentido se repor, quando a memória ressuscitar, quando o soluçar tropeçar nesta matéria pouco concreta, quase secreta, pouco provável, provavelmente etérea, evaporada. Mas por enquanto, o que me leva ao mundo e o que me lava a alma dormente e desamparada, é simplesmente nada…

sexta-feira, novembro 22, 2013

De outras páginas...



“Ítaca deu-te essa viagem esplêndida
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
Terás compreendido o sentido de Ítaca”.


Konstantin Kavafis

sexta-feira, agosto 30, 2013

A casa vida




Díli. O caminho de volta a casa traça um trajeto singular dentro dos diversos bairros da cidade onde a população habita a terra em que construiu as suas casas. A fluidez animada das ruas mais movimentadas e agitadas da cidade parece desaguar, dissipando-se em espaços onde o ruído se desvanece e a sombra de árvores refresca e abriga. A luz é calma. As casas alargam-se aos pátios, aos espaços exteriores, aos caminhos e ruas de terra batida. A casa torna-se não só parede erguida mas presença humana, identidade onde cada momento se inscreve em portas abertas; choros e risos de crianças, música em compasso ritmado que inesperadamente surge de um qualquer canto, dentro e fora de casa. 
A casa constrói-se pela pulsação que os habitantes trazem ao seu dia-a-dia. A casa amplia-se em convívio, transforma-se em sorriso, cumprimentos e palavras trocadas em linguagens que se circunscrevem na voz, em línguas como o português e o tétum, e na expressividade do corpo, um aceno de cabeça, um aperto forte de mãos, o correr divertido, curioso mas despreocupado das crianças, que acompanha o percurso pelo bairro. A casa torna-se comunicação. Enquanto o sol vai desenhando o seu trajeto ao longo do dia, a casa transforma-se em matizadas escritas de cor e luz, fundada entre rotinas diárias e culturais na essência de um povo e ergue-se assim também em ocupação, trabalho, reunião, lazer, diversão, abrigo.
Perto das ruas mais movimentadas da cidade mas resguardadas pelo amparo das árvores que as vigiam e abastecem a refrescante e acolhedora sombra, criando um envolvimento protetor, perde-se momentaneamente a noção de um tempo. Perde-se em si, o próprio conceito de tempo. O tempo será assim tudo aquilo que os habitantes das casas de portas abertas criam para si. Tudo o que vivem dentro e fora das quatro paredes protetoras. O tempo transforma-se também aqui em casa. E a casa torna-se viva. Gerações familiares que perpetuam os seus laços e tradições, anciões de serena presença, homens que vigiam os passos, mulheres que recolhem e acolhem no colo os seus filhos, mulheres que labutam a matéria prima da sua terra, crianças anfitriãs dos bairros presenteando-nos com a simplicidade dos renovados momentos. Um simples apontamento de presenças e de sentidos, e no qual se vão ampliando reavivados sentidos. A casa é por tudo isso vida.

(Dili, Junho de 2013. Texto introdutório ao projecto fotográfico "Casa vida")