sexta-feira, maio 19, 2006

Silêncio em contratempo

Dei por mim em silêncio. Dei por mim alheia ao compasso dos sons que surgem dentro de mim.
Tentei decifrar o código secreto e inoportuno dos aglomerados conceitos que por mim iam penetrando, fundindo-se impassíveis com o deslizar de uma luz baça criada pelo balanço do tempo, que escorregou no vazio. Movimento congénito de um princípio sem fim. Realidade controlada por uma existência aparente, quando se respiram medos, suprimindo o ar, e se olham os segredos da alma, ao invés de se olhar o mar.
Dei por mim na demora de uma quietude compulsiva, sem latejo nem pulsação, ansiando encontrar o trajecto de retorno aos contornos do coração. Uma persistente pausa de luar e vento amachucou os sentidos sem endereço e estancou a demora de uma imagem desfocada e angustiada onde me revi. Descrevi-me tal como o poema que se constrói apenas pela rima.
Passearam pelas paredes desenhos das sombras do mundo e a contagem de um tempo edificado antes dos relógios que agora persistem por aqui. Pêndulos partidos pelo fantasma da vontade de regressar. Passaram por aqui estações de contemplação e alento, e estradas sem origem, nem berma, nem assento. Eternidades longínquas onde vos entendi com outras linguagens e desejos.
Outros sons nasceram conquistando, impiedosos, cidades de desamparo que amainaram a desilusão. Triunfaram relatos de escritos sem passado onde a espera tornou-se cura e os apelos caíram no chão.
Resisti com esse olhar confuso onde as lágrimas querem imitar os rios.
Descansei então o peso dos relatos de futuros que nunca vivi. Dei por mim a ultrapassar sonhos que atravessaram imunes, a sombra das derrotas e das saudades por cumprir. Revi-me em pecados impunes que ninguém presenciou nem renunciou. Sobrevivi a este silêncio solene, embalando-me na passagem dos devaneios rebeldes que também adormeceram por fim. Depois, dei por mim a sorrir.


(Publicado no DNJovem a 19 de Maio de 2006)


(Porque, por vezes, os silêncios dão voz aos imensos, complexos e enleados mundos que passam por nós)

1 comentário:

manuel a. domingos disse...

gostei de ler. já te conhecia do dnj. agora: conheço-te aqui.